Detecção de lesões é feita em unidades públicas de saúde de Piracicaba
ISABEL GARDENAL
Pesquisadores da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP) inauguraram recente- mente um novo tipo de abordagem aos seus pacientes, levando a “clínica” até eles. Trata-se de um programa de busca ativa de lesões bucais com vistas à detecção do câncer de boca, usando a mesma estrutura da campanha anual de vacinação da gripe nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), onde atua a Unidade de Saúde da Família (USF). A iniciativa, incentivada pelo Ministério da Saúde, coloca a FOP no front das ações preventivas do câncer de boca em Piracicaba. O projeto piloto está sendo desenvolvido em quatro USF localizadas nos bairros de Itapuã 2, Paineiras, Santa Rosa e Vila Industrial – intervenção resultante do estudo de mestrado do dentista Marco Aurélio Carvalho de Andrade, orientado pelo docente Márcio Lopes, especialista em Diagnóstico Bucal.
O orientador da dissertação percebeu, ao longo de uma década, que a detecção do câncer de boca em Piracicaba era feita de maneira deficitária, em razão de um desencontro entre quem é atendido (geralmente mulheres idosas sem fatores de risco para câncer de boca) e quem deveria ser atendido (adultos acima de 40 anos que fumam e consomem bebidas alcoólicas). “Então, ao invés de esperar esses pacientes procurarem a campanha de prevenção do câncer de boca junto com a campanha de vacinação da gripe, fomos até os postos de saúde próximos de onde os pacientes residiam e, através de agendamentos prévios dos pacientes das USF, programamos exames rotineiros”, informa.
A população que vive nas regiões do projeto piloto, dimensiona Márcio Lopes, corresponde a um contingente de 12 mil habitantes, sendo que, no cadastro, 800 deles preencheram os critérios de inclusão para o estudo de Andrade. Eram pacientes com idade acima de 40 anos, que fumam ou fumavam e que ingerem ou ingeriam bebidas alcoólicas no decorrer de sua vida. O trabalho aconteceu e está sendo expandido para outras USF e UBS da cidade, objetivando contemplar ao redor de 35 postos de saúde do município.
O objetivo era atender o total dos pacientes mas, por uma série de pro blemas, principalmente pela falta de comprometimento, apenas 125 estão em acompanhamento na FOP, o que é muito frustrante, na opinião do dentista. “Hoje estamos indo até a residência do paciente junto com os agentes de saúde para tentarmos convencê-lo a permitir que realizemos o exame de boca”, revela Márcio Lopes.
Dos 125 pacientes em seguimento, garante o dentista, quase a metade apresentou alguma lesão de boca, número expressivo de acordo com o especialista. As mucosites – inflamações em geral associadas a próteses antigas, sem a devida higienização – foram o principal tipo de lesão encontrada. “É que muitos têm o hábito de dormir com as próteses, ocasionando inflamações na mucosa da boca.” Outras lesões decorreram de trauma de prótese e de tumores.
Se a estratégia da FOP fosse somente se concentrar em tumores, a porcentagem de atendimentos seria muito reduzida. Daí a importância de avaliar todas as lesões. Entretanto, dos 125 pacientes atendidos, quatro foram diagnosticados com tumor, o que dá uma porcentagem de 3,2%. “É alta quando comparada a outras campanhas, que em geral fica em torno de 0,05%. Numa campanha de curto período de tempo, identificar 3,2% é uma porcentagem significativa”, aponta o dentista.
Para implantar o programa, lembra ele, foi adotada a mão de obra dos alunos de pós-graduação, envolvidos no treinamento dos dentistas dos postos de saúde. Isso tudo ocorreu vinculado à dissertação de mestrado de Andrade, iniciada em 2008, com levantamento de pacientes nas quatro UBS e busca ativa das lesões. Já se estuda a mudança do nome da campanha. Ao invés de Campanha de Prevenção de Câncer de Boca, o foco será na detecção de lesões, a fim de promover a saúde bucal do paciente.
Problemática
O câncer de boca incide em cerca de 14 mil casos novos por ano no Brasil e de 400 mil no mundo todo. Ele começa, realça o dentista, com uma ferida clássica que no início é assintomática. Esta, aliás, é a lesão principal para a qual o paciente deve estar atento, alerta. No entanto, outras formas também podem se manifestar, como manchas brancas e vermelhas, que indicam que se trata de casos ini- ciais de câncer. As aftas, ao contrário, são lesões comuns que nada têm a ver com o câncer. “Na realidade, alguns pacientes com câncer de boca vão ao consultório pensando que têm afta.”
Um fator preditivo de câncer, ensina Márcio Lopes, reside em empregar o tempo de evolução da lesão para chegar ao diagnóstico. A afta dura no máximo uma semana. Se demorar mais tempo para sumir, ao redor de duas semanas, provavelmente deve ser outra lesão. Esta é uma informação importante, distingue o especialista.
Caminhando já para o tratamento do câncer de boca, ele vai depender de alguns aspectos, pontua o orientador do trabalho. Os mais importantes são estadiamento clínico (o tamanho do tumor, se é localizado ou se espalhou para outros órgãos, sobretudo linfonodos e pulmões), localização (se ele ocorre numa região de lábio inferior ou de língua) e as condições clínicas do paciente. Agora, normalmente, o tratamento é cirúrgico em casos iniciais, e cirúrgico mais radioterápico em casos mais avançados. No câncer de boca, a quimioterapia tem uso mais restrito, principalmente quando a cirurgia não é indicada.
No que tange à sobrevida, para pacientes com lesões precoces menores que 2 cm, tratados adequadamente, as chances de recuperação batem à casa dos 95% em cinco anos. “Por isso o valor dessa campanha em detectar o câncer mais precocemente, já que a maior parte dos pacientes do nosso serviço vêm em estágio avançado da doença. As cirurgias, nesse caso, são mutilantes e causam mais sequelas, maior custo e menor sobrevida”, contextualiza Márcio Lopes.
O paciente com câncer de boca vivencia vários problemas, mormente a dificuldade de assumir fatores de risco. É sabido que, para câncer de boca, fumo e bebidas alcoólicas, a maioria das vezes destiladas, são deletérias para este tipo de câncer. E o pior é que aqueles que desenvolvem esta doença têm grande resistência em parar de fumar ou de beber, o que faz com que apresentem possibilidades aumentadas de ter outros tumores. Outra problemática envolve aceitar o tratamento em estágios avançados, quando são requeridas cirurgias mais extensas, que poderão afetar a fala e a deglutição.
O procedimento cirúrgico para câncer de boca, refere Márcio Lopes, é efetuado pelo médico especialista em Cirurgia de Cabeça e Pescoço. A atuação do dentista é mais anterior, na fase do diagnóstico, e posterior, para o controle dos efeitos do tratamento em boca e reabilitação do paciente, a priori quando há colocação de próteses.
Os resultados deste programa da FOP são ainda preliminares, ressalva o dentista. “Contudo, gostaríamos que essa iniciativa se difundisse no serviço público da cidade e, consequentemente, os dentistas, os agentes de saúde e os médicos envolvidos nas USF motivassem outros pacientes.”
Segundo o especialista, são raros os relatos de câncer de boca em crianças. Isso porque, quando se fala do câncer de boca, o que está sendo considerado é o carcinoma espinocelular, um tipo específico causado pelo alcoolismo e pelo tabagismo, ou seja, tem íntima rela- ção com a exposição a esses fatores de risco, ditos epidemiológicos.
Na FOP, uma linha de pesquisa, também coordenada pelo professor Márcio Lopes, avalia o câncer de boca em pacientes jovens, abaixo de 40 anos. A propósito, um estudo de doutorado recente correlacionou esse grupo de pacientes com pacientes convencionais com câncer de boca, acima de 40 anos, que fumam e bebem. “Identificamos que pacientes jovens com câncer de boca têm outro perfil. Geralmente não fumam e não bebem, são mulheres e o tumor é localizado na língua”, sinaliza.
Outra tese de doutorado, defen- dida no ano passado, trabalhou com pacientes com lesões pré-malignas que tinham risco de se transformar em câncer. Em andamento, uma tese de mestrado compara o resultado da busca ativa com os resultados já obtidos ao longo dos dez anos em que é feita com a campanha de vacinação da gripe. Outras ainda estão sendo produzidas nos centros de oncologia para avaliar os efeitos colaterais da radioterapia em pacientes com câncer de boca, todas orientadas por Márcio Lopes.
O especialista relata que hoje também especulam-se alguns alimentos que têm íntima relação com o câncer de boca. O chimarrão parece ter efeitos prejudiciais à saúde bucal, com risco de desenvolvimento desta doença. Só que tal risco é mínimo tendo em vista os fatores tradicionais. Igualmente o consumo contínuo de carne vermelha, feita em churrasco, parece aumentar esse risco.
De outra via, algumas pesquisas mostram os benefícios das frutas vermelhas e amarelas, pela ação do betacaroteno, e do tomate, em razão do licopeno, que são fatores que protegem contra este tipo de câncer. “Eli- minar fatores de risco principalmente cigarro e bebidas alcoólicas, junto ao consumo de uma dieta equilibrada, rica em frutas, legumes e verduras, é isso que chamo de minimizar risco para câncer bucal”, define o dentista.
A expectativa é que a implantação do programa de busca ativa integre as ações dos postos de saúde e que os exames sejam feitos de maneira mais contínua pois, no prazo de um ano, situa o orientador, o paciente tem totais condições de desenvolver um tumor maligno, ação que ajudaria a identificar as lesões iniciais. Deste modo, os dentistas e os agentes de saúde estariam treinados para atender e a FOP continuaria como referência para confirmação do diagnóstico. “Atuaria como uma malha distribuída na cidade, nos postos de saúde.”
Os pacientes seriam atendidos nesses postos e lesões suspeitas seriam encaminhadas para o serviço da FOP, onde o diagnóstico seria realizado. “A gente daria sequência analisando os efeitos colaterais à reabilitação do paciente”, comenta Márcio Lopes. O diagnóstico do câncer de boca é feito mediante exame clínico, identificando-se as lesões suspeitas, confirmadas por biópsia, em que parte do fragmento da lesão é removido e analisado.
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■ Publicação
Dissertação: “Busca ativa de lesões malignas e desordens potencialmente malignas da cavidade bucal em quatro unidades de saúde da família (USF) na cidade de Piracicaba”
Autor: Marco Aurélio Carvalho de Andrade
Orientador: Márcio Lopes
Unidade: Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP)
Fonte: http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/maio2011/ju494_pag04.php
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